domingo, 8 de novembro de 2009

QUEDA DO MURO



QUEDA DO MURO
Um descuido e Berlim voltou a ser uma só


Há 20 anos, o cair da noite foi o despertar de uma nova Alemanha. Em 9 de novembro de 1989, o Muro de Berlim ruía. Era o fim do símbolo da Guerra Fria. A vitória capitalista fez os EUA se arrogarem a libertação da capital alemã. Nesta segunda e penúltima reportagem da série sobre as duas décadas da queda do Muro, a desmistificação do papel americano e a história catalisada por um erro humano.


Pode a história brotar de um acidente? A queda do Muro de Berlim provou que sim. Um erro cometido pelo desavisado porta-voz do Politburo da República Democrática Alemã (RDA), de domínio soviético, acelerou o curso da mudança e fez, em poucas horas, alemães orientais e ocidentais voltarem a ser um só. O fim do Muro deve-se tanto à culminação de transformações inevitáveis iniciadas no bloco comunista quanto à casualidade. Uma conquista do povo alemão e do Leste Europeu. De dentro para fora, sem interferência dos Estados Unidos, o símbolo da Guerra Fria foi abaixo.
Dia 9 de novembro de 1989. Os ponteiros do relógio marcavam a iminência da história. Às 18h, o porta-voz Günter Schabowski caminhou para a reunião diária com a imprensa. Empunhava, misturado a outros comunicados, um memorando de duas páginas entregue por Egon Krenz, chefe do Partido Comunista. Leu como se fosse mais um. Parecia não saber a dimensão daquelas palavras. O documento dizia que, pela primeira vez, todos os alemães orientais teriam direito a tirar passaporte. A sala entrou em ebulição. Perguntaram ao funcionário da RDA quando a medida entraria em vigor. Schabowski titubeou. Voltara de férias há pouco tempo e não tinha noção do que se passava no Leste Europeu e em Berlim. Acuado, folheou os papéis, ergueu os olhos e respondeu: “Imediatamente”.
Aquilo não era exatamente o que o regime da RDA queria. A medida só deveria entrar em vigor no dia seguinte e, para tirar o passaporte, os cidadãos estariam sujeitos a normas e regulamentos. Mas era tarde demais.
Aquela gente acuada e reprimida, que há décadas não podia ver o mundo além da parede da vergonha, assistiu pela TV à boa-nova. A notícia se espalhou. Às 19h, os alemães orientais começaram a se amontoar nas proximidades do Muro. Dezenas, centenas, milhares. Os guardas da fronteira não sabiam o que fazer. A elite do partido estava inacessível. Às 22h, uma multidão nunca antes vista se aproximou do limite com a Berlim Ocidental. Cada vez mais ousados, afrontavam os amedrontados guardas. Ordenavam: “Abram!” Do outro lado do Muro, ouvia-se a resposta dos ocidentais: “Venham”. E foram.
Subiram no Muro, marretaram o Muro, atravessaram o Muro. Pouco depois das 23h, aqueles milhares de insatisfeitos deixavam de ser alemães orientais para ser somente alemães. Um sem-número de Trabant – os automóveis com motor de dois tempos fabricados na RDA – tomava a Berlim Ocidental. Um caminho sem volta para o mundo.
Os EUA, potência vencedora da Guerra Fria, reivindicaram para si os louros da queda do Muro. Surgiu o “mito” do país libertador, inimigo da tirania, decisivo para a democratização no Leste Europeu. Duas décadas depois, no livro 1989 – O ano que mudou o mundo (Zahar, 247 páginas), o jornalista americano Michael Meyer, ex-correspondente da Newsweek no Leste Europeu, desfaz o equívoco histórico. “Já naquela época, eu desconfiava de que não estivéssemos vendo a história toda. Hoje, tenho certeza disso”, escreveu. “Há uma linha reta que vai direto da fantasia de 1989 a Saddam Hussein e o Iraque – e segue além deles. É possível argumentar sem exageros que o desastre americano no Oriente Médio nasce da arrogância que acompanha nossa vitória na Europa Oriental. Por extensão lógica, tudo o que temos a fazer é enfrentar o diabo em pessoa, e, com um grande empurrão, o povo se erguerá e romperá seus grilhões. Bêbados de orgulho e poder, entendemos tudo terrivelmente errado”, completou.
O historiador Estevam Martins, da Universidade de Brasília (UnB), também acredita que o fim do Muro foi uma conquista do povo alemão. “Os americanos não interferiram em nada. Pegaram carona quando o barco já estava andando. Perceberam uma boa ocasião para dizer que eram eles que estavam ganhando”, afirma. “Não houve intervenção dos Estados Unidos. Eles se aproveitaram da insatisfação dos alemães, da ineficácia econômica do regime e do desmoronamento do Leste Europeu”, concorda o historiador Michel Zaidan, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). “Não se pode pensar também que o movimento é exclusivamente endógeno. Nenhum país é imune à influência exterior. Mas a queda do Muro se deu 70% de dentro para fora”, ressalta Maria Aparecida de Aquino, da Universidade de São Paulo (USP).